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Depois de ter lido, por mero acaso, um jornal atrasado no consultório do dentista onde estive hoje, não me ocorreu outro titulo mais adequado e actual para a história verídica que, por isso mesmo, agora e aqui registo para memória futura:
Apesar de já ter sido há muito tempo lembro-me perfeitamente de um cavalheiro (na verdadeira acepção da palavra) e da sua família que durante o mês de Agosto passavam férias numa moradia que possuíam na minha terra, isto no tempo da outra senhora, esclareça-se.
Eram pessoas importantes e conhecidas aqui na capital (naquele tempo ainda não era usado o termo
figura pública, muito menos
jet-set) e que não dispensavam um homenzinho, o Sr. António que, como seu
chauffeur e devidamente uniformizado, lhes abria e fechava a porta (sempre com muita dignidade e cerimónia) do luzidio automóvel em que se faziam deslocar. Um verdadeiro luxo para a época e penso que de marca LA SALLE se a memória não me falha, neste pormenor. Era então rapazote mas aquelas cenas nunca desapareceram da minha memória assim como o aroma que sempre deixavam para trás, como rasto, quando passeavam pelas ruas lá da vila. Era um agradável e inebriante odor que resultava da mistura de uma fragrância rara (pelo menos para mim durante o resto do ano) com o cheiro característico de gasolina mal queimada do seu luxuoso espada. Recordações vivas que guardo desse tempo já longínquo.
Ah, e havia também uma moça da minha idade muito bonita que sempre os acompanhava, penso que sobrinha, a quem eu, sempre que podia, falava! Mas isso é outra história…
A cena do cerimonial do
chauffeur é que me interessa agora registar porque, curiosamente, revejo-a ao vivo quase todos os dias apesar de já terem passado algumas décadas. Só que com algumas diferenças! Os
Srs. Antónios de hoje não têm de usar a mesma farda cinzenta e comprida como uma gabardina com a gola azul escura subida (e ainda bem) porque esses costumes, entretanto, também se democratizaram. Mas é só pelo modelo da farda que se fica a democracia actual… Estranhamente, ou tal vez não, os importantes
cavalheiros que esses dedicados profissionais de hoje continuam a servir, são agora muito mais exigentes. E isso nota-se, por exemplo, na “
pose” que assumem ao viajar, em regra, no banco traseiro e quase sempre com o nariz enfiado num jornal ou em qualquer pseudo-relatório, para disfarçar. Depois há ainda outros rituais que adoptam - quase “
tiques” - e que os ajudam a marcar a diferença ou para confundir o pagode que lhes sustenta as mordomias. Tudo pormenores menores mas que não se notavam, em nenhuma circunstância, no cavalheiro que lá na vila e no antigamente passeava os seus “luxos” durante o mês de Agosto que estava entre nós e, segundo o que era conhecido e o Sr. António confirmava, à custa da sua fortuna pessoal…
Ora, o que me foi dado observar ontem – quando esperava o meu filho que tinha ido à faculdade entregar um trabalho – confirma o que atrás registei. Vi sair, pela porta principal e em grande estilo, um conhecido deputado da nossa praça que cá fora já tinha à sua espera um Mercedes topo de gama com um fiel servidor perfilado, com a porta aberta e com um casaco de malha na mão para que a
excelência o pudesse trocar pelo que trazia vestido!!! O pormenor do casaco só podia ser para lhe minorar os efeitos do ar refrigerado de que dispunha dentro do carro pois, cá fora, a canícula que se sentia era enorme … Depois, depois lá seguiram: O
chauffeur com a respectiva
excelência a ler no banco traseiro sem que, pelo menos por uma vez, levantasse os olhos do papel. Exactamente assim….
É caso para desabafar: como estão longe os tempos em que estes “ilustres cavalheiros” e outros menos ilustres, se sentavam democraticamente no banco dianteiro das viaturas que utilizavam, em mangas de camisa desabotoada… Mas também, em abono da verdade, foi só por um período curto, logo… logo a seguir ao 25 de Abril, evidentemente…
E esta cena – já vista vezes sem conta com tantos tipos diferentes de personagens – para além de me avivar recordações longínquas, dá também corpo a uma das dúvidas que há muito me acompanhava e que ultimamente se tinha transformado num autêntico quebra-cabeças. É que não conseguia descobrir
uma (sim, eu já só precisava de uma)
razão que me ajudasse a compreender o fenómeno da existência de tantas
excelências como esta e de outros fenómenos não menos extravagantes – em arrepio absoluto à situação geral do nosso país – muito especialmente a partir do momento em que os sinais de recessão se tornaram infernizantes para a maioria dos portugueses e que deu azo a que o governo, diligentemente, se apressasse a aumentar e a criar mais impostos, a garantir (?) firmes propósitos de redução da despesa pública, a remeter para as calendas a idade das reformas, a manifestar desígnios (?) de combate às regalias dos políticos e dos gestores de empresas públicas, ao défice e às fraudes fiscais e… etc., etc! Tudo numa só penada!
É de facto verdade que achava esta situação muito estranha, ou melhor, algo me dizia que a razão que a justificava só podia ser por obra e arte de um verdadeiro milagre. E até admitia que esse “pressentimento” não fosse exclusivamente meu pensando que muitos outros que por aí circulam ou simplesmente ‘olham à sua volta’ certamente deviam sentir o mesmo. Não podia ser de outra forma e que a sua estupefacção e deslumbramento seriam equiparados aos sentimentos que não deixavam de me intrigar. Só que, tenho de o reconhecer, por mais que me esforçasse não conseguia explicar esse fenómeno estranho.
Hoje, porém, e quem sabe se para me compensar o sacrifício doloroso da ida ao dentista, fez-se luz no meu espírito ao ler, por acaso, o semanário atrasado que repousava na respectiva sala de espera. A desejada resposta – pelo menos para uma das minhas dúvidas – lá estava à frente dos meus olhos, descarada e escarrapachada em letra gorda:
“AUTOCONSTÂNCIOO Banco de Portugal gastou 1,2 milhões de euros em carros de luxo no último ano e meio. Vitor Constâncio escolheu um BMW topo de gama entre os BMW, AUDI, MERCEDES e JAGUAR encomendados. A pedido dos utilizadores, os bólides vieram com diversos extras: sistema de navegação profissional, estofos de pele, jantes com raios duplos, acabamentos de madeira, espelhos aquecidos e bússola digital. E ao fim de três anos podem ficar com os automóveis por dez por cento do valor da aquisição… etc.”
In: Jornal
O INDEPENDENTE –
Edição nº 896 de Sexta-feira, 15 de Julho de 2005.
Afinal a vida faustosa que por entre nós se pavoneia através da miríade de
espadas topo de gama, cada vez mais caras e espampanantes com os seus leais
chauffeurs, só para dar um exemplo, têm aqui e em grande percentagem as suas raízes. Sim, porque pelo “exemplo” que dá este guardião do templo, fiscal permanente das contas públicas e, cumulativamente, profeta anunciador de todas as nossas desgraças, não há mais lugar para dúvidas. Só nos restam mesmo as certezas de que as esperanças, ainda alimentadas por alguns sonhadores, irão todas e rapidamente, pelo cano abaixo.
É precisamente por estes casos que o povo, com a sua sabedoria, costuma dizer:
FARTAI VILANAGEM!!! enquanto os filósofos pensadores como o autor da citação de hoje, preferem, no fundo da sua inesgotável imaginação e angélica sabedoria, dizer: "
A crítica é o imposto que a inveja cobra ao mérito" -
Duque de Lévis. Eu, como membro do Clube Nacional de Invejosos, escolho naturalmente a primeira até porque, nestes casos, não consigo descobrir onde está o
mérito!
Mas voltando à notícia, o que curioso é que comigo – depois do espanto inicial – a mesma deu lugar a uma estranha e perigosa sensação de tranquilidade, ou seja, consegui "descansar" ao descobrir que, afinal, uma parte importante do mistério que me apoquentava não era resultado de nenhum milagre. Emanava, isso sim e claramente, da “obra e arte” de alguns mortais como eu, só que muito mais descarados e sortudos e, pela amostra, já com o
paraíso a seus pés!
Tanta preocupação, afinal, por coisas tão simples quanto isso...